Um médico cardiologista recorreu à Justiça da Bahia para retomar a convivência com o filho, de apenas 2 anos, interrompida por vontade exclusiva da mãe. Ela argumentou que o genitor, por trabalhar em unidade de saúde, oferecia risco à saúde da criança por ter chances de contrair a Covid-19. A decisão, favorável ao entendimento da mãe em primeiro grau, foi reformada pelo Tribunal de Justiça da Bahia – TJBA.
Em suas razões recursais, o pai sustentou que, nos dias de hoje, as medidas de proteção já são extremamente esclarecidas e conhecidas, e os métodos de prevenção de contágio também foram extremamente disseminados, deixando a todos mais precavidos. Destacou ainda que, em contraposição ao disposto na decisão de primeiro grau, não há previsão para o “fim da pandemia”.
Salientou ainda que é médico cardiologista, não atua na linha de frente de combate ao Coronavírus e sequer pode ter contato com pacientes contaminados, pois cuida exclusivamente de pacientes em Unidade de Terapia Intensiva – UTI, considerados de alto risco de contrair a doença. Assim, não oferece perigo de contaminação ao filho.
De acordo com os autos, o pai não tinha notícias do menino desde junho. Ele defendeu ainda ser vítima de alienação parental pela agravada, prática prevista pela Lei 12.318/2010. Requereu, então, a concessão da tutela antecipada recursal para determinar, de imediato, a retomada da convivência física com o menino.
Direito dos pais e, principalmente, dos filhos
Em sua decisão, a desembargadora do TJBA pontuou que o direito de convivência, previsto no artigo 1.589 do Código Civil, não pertence apenas aos pais, mas também, e principalmente, aos filhos. Tal situação só pode ser superada, com restrições proporcionais, com esteio no interesse prioritário da criança ou adolescente, determinado pelo artigo 227 da Constituição Federal.
A magistrada considerou a importância do convívio com o pai para o desenvolvimento físico e emocional da criança. Também acatou o argumento de que não se pode esperar pelo fim da pandemia do Coronavírus, afinal, a situação assola todo o mundo e não se sabe quando terminará.
Por isso, entendeu como imprescindível o restabelecimento da convivência entre eles e determinou a retomada do convívio presencial às sextas-feiras e sábados, a cada 15 dias, além de contato virtual contínuo. Em razão da animosidade evidenciada entre as partes, deverá haver a intermediação de uma pessoa da confiança de ambos nos dias estipulados para o convívio entre pai e filho.
Decisão sensível
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a advogada Laiane Prates Lebre representou o pai na ação. Para ela, a decisão do TJBA foi sensível ao direito – tanto da criança, quanto do genitor – de conviverem um com o outro.
“A convivência familiar é um direito dos genitores e da criança e merece ser assegurada, mormente porque são os interesses da criança que devem prevalecer sobre os de qualquer outro. Para que o direito de convivência seja restrito, é necessário que haja prova de risco real e concreto ao menor”, ressalta a advogada.
Ela observa que, desde o início da pandemia, profissionais de saúde têm sido afastados do convívio com os filhos. “No início, eram quase unânimes as decisões que vetavam qualquer contato físico de profissionais de saúde com os seus filhos. Não importava qual o tipo de função que o profissional exercia: o Judiciário já determinava que esse contato se desse apenas de modo virtual”, avalia.
O entendimento, àquela época, era justificável, na visão de Laiane, diante do espanto e das incertezas provocados pelo Coronavírus. “Mas, com o passar do tempo, e com a percepção de que a pandemia não seria breve como se imaginava, começou-se a ser feito um sopesamento entre o real risco da contaminação da criança pelo COVID-19 e o direito da própria criança de conviver com ambos os genitores.”
“Atualmente, as medidas de proteção já são amplamente esclarecidas e conhecidas, e os métodos de prevenção de contágio também foram extremamente disseminados, deixando a todos mais precavidos. O Executivo estadual e municipal vem monitorando a pandemia, e a grande maioria dos estados está em avanço da flexibilização do isolamento social”, argumenta.
Duplo sacrifício
Por tais razões, Laiane opina que o afastamento indiscriminado dos filhos de seus pais, unicamente por estes trabalharem em centros de saúde, já não é mais adequado. “Não há motivos plausíveis para profissionais de saúde serem punidos com a ausência de contato físico com os seus filhos, até porque, no atual cenário mundial, esses profissionais já vêm realizando grande sacrifício por toda a sociedade.”
A advogada observa que o Poder Judiciário vem analisando caso a caso, em atenção às particularidades de cada família. “Analisa-se qual o tipo de função que aquele profissional exerce e se ele tem grande exposição ao vírus durante o seu labor. Há de se salientar que os profissionais de saúde são os que possuem maiores conhecimentos acerca dos meios de prevenção de contaminação do vírus, justamente por conta da sua profissão.”
A tendência deve continuar, mesmo que advenha a segunda onda de contágio do Covid-19. “Muitos juízes atualmente vêm reformando as suas próprias decisões tomadas no início da pandemia, suspendendo a ordem de que esses profissionais tenham contato com os seus filhos apenas de modo virtual, e ordenando que haja o restabelecimento imediato do contato físico entre eles.”
Para a advogada, outro posicionamento do Judiciário poderia levar até mesmo à debandada dos profissionais de saúde de seus postos, incapazes de verem interrompido o convívio com a prole. “Se tem uma coisa que essa pandemia nos ensinou foi a valorizar as coisas imateriais, como a importância de qualquer minuto de convívio com aqueles que amamos”, reflete.
Conflitos por convivência na pandemia
Com a pandemia, cresceu o número de divergências na Justiça entre pais pelo convívio com os filhos. Para a advogada, falta o entendimento de que a convivência com ambas as figuras parentais é fundamental para o bem-estar e desenvolvimento das crianças. “Infelizmente, em alguns casos, as crianças são usadas como ‘moedas de troca’ pelos seus próprios pais, principalmente quando há mágoa entre estes.”
“Em muitos casos, quando analisados, não existia de fato esse aumento do risco de contágio no simples deslocamento da criança para a casa do outro genitor. Mesmo assim, muitos pais e mães ficaram meses sem ver seus filhos durante a pandemia porque o convívio foi cessado por decisão unilateral de um dos genitores. Nesses casos, eles tiveram que esperar que o Judiciário determinasse que o contato físico deveria existir com o outro genitor mesmo durante a pandemia, e isso pode durar meses para acontecer, principalmente por conta do abarrotamento das varas de família durante esse período.”
De acordo com Laiane, a prática configura ato de alienação parental. “São mais do que comprovados os prejuízos mediatos e imediatos que a criança tem quando é afastado do convívio de algum dos genitores, e a convivência entre eles deve ser garantida sempre que possível.”
“Somente nos casos de risco real para o menor que ela deve ser vedada e, mesmo assim, providências devem ser tomadas para que esse risco seja cessado e o convívio seja restabelecido o quanto antes. Deve-se ter em mente que o bem-estar da criança sempre será a prioridade e a convivência entre pais e filhos sempre será o mais saudável para todos”, defende a advogada.